A morte da cantora e compositora Angela Ro Ro, aos 75 anos, ocorrida em 8 de setembro, não marca apenas a partida de uma das vozes mais singulares da Música Popular Brasileira (MPB), mas também um momento de reavaliação de sua vida, obra e impacto cultural. Sua voz rouca, que navegou entre o blues, o jazz e o samba-canção com uma franqueza visceral, foi o instrumento de uma artista que se recusou a se separar de sua humanidade. Este relatório, dividido em duas partes, examina a fundo o legado de Angela Ro Ro e, em seguida, analisa as circunstâncias de seu falecimento e a profunda comoção pública que se seguiu. Sua trajetória, marcada por controvérsias, resistência e uma autenticidade inegociável, demonstra que para Angela, a arte e a vida eram uma única e poderosa declaração.
Parte I: A Voz Rouca que Desafinou o Recato: Vida, Obra e a Poesia da Rebeldia
Angela Maria Diniz Gonçalves, conhecida pelo pseudônimo que evoca tanto o canto quanto o rugido, emergiu no cenário musical brasileiro como uma anomalia necessária. Sua história não é apenas a de uma cantora, mas a de uma figura transgressora que usou sua arte como um manifesto pessoal, um diário aberto de suas dores, amores e batalhas.
Uma Trajetória Única: Da Garçonete ao Ícone da MPB
O caminho de Angela Ro Ro para o reconhecimento foi atípico e sinuoso. Nascida no Rio de Janeiro, ela começou sua vida profissional cantando em bares noturnos da cidade. Contudo, uma fase crucial e muitas vezes subestimada de sua biografia é a que a levou para longe do Brasil. Em 1971, Angela mudou-se para Londres, onde, longe dos holofotes e dos palcos, trabalhou como garçonete e faxineira. Essa experiência de “exílio” e de trabalho braçal parece ter sido fundamental para a formação de sua persona artística. A crueza e a autenticidade de suas composições, que mais tarde viriam a ser sua marca registrada, eram, sem dúvida, informadas por uma vivência real e sem artifícios, refletindo o sentimento de uma mulher que, nas palavras de Fafá de Belém, “sangrava pelos poros”.
Apesar de sua relutância em se tornar famosa, Angela Ro Ro já era reconhecida por seus pares. Foi durante sua estadia em Londres que ela iniciou uma amizade duradoura com Caetano Veloso. A colaboração com o artista baiano começou de forma “despretensiosa” em 1972, quando ela participou do aclamado álbum
Transa, tocando gaita na música “Nostalgia”. Essa participação no disco de um dos maiores nomes da música brasileira, ainda no início de sua trajetória, revela que sua genialidade musical era evidente para aqueles que a cercavam muito antes de ela mesma abraçar a carreira artística. A genialidade de Angela, de fato, parecia precedê-la, uma força que, contra sua própria vontade inicial, a empurrava para o palco.
O Primeiro Álbum (1979): A Gênese de um Gênero Próprio
O álbum de estreia homônimo, lançado em 1979, tornou-se um marco estético na MPB. Com sua sonoridade audaciosa, o disco mesclou de forma inédita o blues, o jazz e a canção popular brasileira com uma poesia romântica e visceral. A obra serviu como um espelho de emoções cruas, sem retoques. O principal hit do álbum, “Amor, Meu Grande Amor,” em parceria com a compositora Ana Terra, fala sobre uma paixão intensa. No entanto, outras faixas como “Só Nos Resta Viver” abordavam a solidão e a dor de forma direta, estabelecendo um vínculo profundo com o público que buscava nas letras de Angela uma identificação com suas próprias aflições. A apropriação de sua música por uma crítica que a associava a “tomar um CHIFRE!” sublinha como a artista não temia o desnudamento emocional, cimentando seu lugar como uma cronista da vida sem disfarces.
O Escândalo (1981): A Arte como Resposta e Protesto
O ápice do desnudamento público de Angela Ro Ro ocorreu com o lançamento de seu terceiro álbum, Escândalo, em 1981. A obra foi uma resposta direta e elaborada à cobertura sensacionalista de seu relacionamento com a cantora Zizi Possi, que terminou de forma conturbada. A imprensa, em vez de focar na sua música, a relegou ao noticiário policialesco, explorando sua vida privada e sua orientação sexual de maneira vexatória. A resposta da artista não foi o silêncio, mas sim um manifesto artístico.
O disco Escândalo serviu como um veículo de protesto e deboche. A capa, com uma diagramação que simulava uma manchete de jornal, e o encarte, que incluía uma carta da artista direcionada à imprensa, eram partes intrínsecas da obra. Nesses textos, Ro Ro defendia a separação entre a “criatura humana” e a “mulher criadora,” questionando o direito da mídia de julgar sua pessoa em vez de seu trabalho. A canção-título, presente de Caetano Veloso, reforçava a ideia de que o “grande escândalo” era ela própria, em sua solidão e autenticidade. O álbum é um documento histórico que, em meio ao processo de redemocratização do Brasil, ilustra como as liberdades individuais, em particular a de orientação sexual, ainda eram objeto de feroz disputa e violência midiática. Angela Ro Ro não apenas transformou sua dor em arte, mas também transformou o ataque em um ato de resistência cultural.
A Recusa de “Malandragem”: Integridade Artística e o Preço da Autenticidade
A história de Angela Ro Ro é repleta de momentos que evidenciam sua inabalável fidelidade a si mesma. Um dos mais emblemáticos é a recusa de gravar a canção “Malandragem,” composta por Cazuza e Frejat. Os amigos, que escreveram a música especialmente para ela, ficaram surpresos com a rejeição. A artista, segundo seu próprio relato, não se reconhecia nos versos que falavam sobre uma “garotinha esperando o ônibus da escola”.
Essa decisão, aparentemente contraintuitiva para um artista que buscava sucesso, demonstra uma profundidade de caráter notável. A recusa de uma canção com potencial comercial, vinda de compositores tão aclamados, foi um ato de autodefinição artística. Ela não queria cantar o que não era, preferindo manter a integridade de sua persona. A ironia reside no fato de que a música acabou sendo imortalizada por Cássia Eller, outra cantora que construiu sua imagem pública e artística sobre a base da autenticidade e da franqueza. A decisão de Angela, portanto, reforça a narrativa de que sua arte estava inexoravelmente ligada à sua verdade, mesmo que isso custasse o sucesso imediato.
O Legado LGBTQIA+: A Poesia da Rebeldia
O legado de Angela Ro Ro transcende sua discografia. Ela foi uma das primeiras artistas brasileiras a assumir publicamente sua homossexualidade , tornando-se um símbolo de resistência e um ícone para a comunidade LGBTQIA+. A franqueza que ela usou para se assumir publicamente, em uma era de repressão e violência social, é a mesma que ressoava em suas canções viscerais. O preço pago por essa autenticidade foi brutal. A própria cantora revelou, em uma entrevista, que foi espancada cinco vezes por forças de segurança do Rio de Janeiro devido à homofobia. Esses ataques resultaram na perda da visão de um dos olhos, um lembrete físico e doloroso da violência que ela enfrentou em sua luta por visibilidade e respeito. Sua vida se tornou, portanto, um ato de ativismo constante, um testemunho comovente da luta por dignidade. A importância de sua figura para a história da comunidade lésbica brasileira é tão grande que um podcast acadêmico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi criado para contar sua trajetória, com a professora Joana Ziller resumindo o impacto da artista na frase: “O podcast nasceu por causa da Ro Ro”.
Ano | Acontecimento | Relevância no Contexto da Vida e Obra |
1971 | Muda-se para Londres e trabalha como faxineira e garçonete. | Fase de “exílio” e trabalho braçal que informa a autenticidade e a crueza de sua arte. |
1972 | Participa do álbum Transa, de Caetano Veloso, tocando gaita. | Reconhecimento de sua genialidade por um dos maiores nomes da música brasileira antes mesmo de sua estreia solo. |
1979 | Lança seu álbum de estreia, Angela Ro Ro. | Marca o início de uma carreira solo icônica, unindo MPB, blues e jazz, com sucessos como “Amor, Meu Grande Amor”. |
1981 | Lança o álbum Escândalo após polêmica com a imprensa. | Transforma a polêmica pessoal em um manifesto artístico e um ato de protesto contra o sensacionalismo e a homofobia. |
Final dos anos 80 | Recusa-se a gravar “Malandragem,” de Cazuza e Frejat. | Demonstra sua inabalável integridade artística e a prioridade da autenticidade sobre o sucesso comercial. |
Ao longo da vida | Assume sua homossexualidade publicamente. | Torna-se um símbolo de resistência e um ícone da comunidade LGBTQIA+, pagando um preço físico e pessoal por sua visibilidade. |
Parte II: O Adeus em Notas e Silêncios: Falecimento, Repercussão e a Oração Coletiva
O falecimento de Angela Ro Ro trouxe à tona não apenas o luto, mas também a complexidade de como a informação sobre figuras públicas é veiculada e como a dor é processada na era digital.
A Notícia e as Circunstâncias Finais
A confirmação da morte de Angela Ro Ro, aos 75 anos, no Hospital Silvestre, na Zona Sul do Rio de Janeiro, gerou uma imediata, mas por vezes conflituosa, cobertura midiática. As informações sobre os detalhes de seus últimos meses e a causa de seu óbito apresentaram discrepâncias significativas entre as fontes. Enquanto alguns veículos reportaram que a cantora estava internada desde junho com um quadro de infecção pulmonar , outros mencionaram a internação em julho. A causa da morte também foi descrita de diferentes maneiras, como uma “infecção após contrair uma bactéria na UTI” , “infecção pulmonar grave” e, mais especificamente, uma “parada cardíaca após um procedimento cirúrgico”.
Essa fragmentação da narrativa sobre seus últimos momentos não é um erro, mas sim um reflexo da urgência e da natureza descentralizada do ciclo de notícias moderno. A falta de uma declaração oficial unificada da família ou assessoria pode ter contribuído para a disseminação de diferentes versões, deixando que a história fosse contada por múltiplos pontos de vista. Essa dispersão da informação, paradoxalmente, ressalta a importância de se adotar uma postura de análise crítica, compreendendo que a verdade sobre o fim da vida de uma pessoa pública muitas vezes é construída a partir de relatos fragmentados e nem sempre totalmente congruentes.
O Silêncio do Velório e do Sepultamento
Um dos pontos mais notáveis na cobertura de seu falecimento foi a ausência de informações públicas sobre o velório e o sepultamento. Diferentes veículos de imprensa confirmaram que não havia detalhes disponíveis sobre as cerimônias fúnebres. Esse silêncio, em contraste com a ruidosa comoção virtual, é um detalhe de grande significado.
A falta de uma cerimônia pública, amplamente divulgada, pode indicar um desejo de privacidade por parte da família e dos amigos mais próximos, que preferiram uma despedida íntima. Em um mundo onde o luto de figuras públicas é muitas vezes transformado em espetáculo, a discreta partida de Angela Ro Ro se alinha com a natureza de sua personalidade, sempre complexa e, por vezes, reclusa. A ausência de um velório para o público não diminuiu o luto, mas o transferiu para o plano virtual e simbólico. Fãs e artistas fizeram sua despedida através de homenagens, solidificando a ideia de que o adeus à artista não precisou de um espaço físico para ocorrer, pois ele se deu de forma coletiva e digital.
A Comoção e a Oração Coletiva: Uma Reafirmação do Legado
A notícia da morte de Angela Ro Ro provocou uma onda de comoção nas redes sociais e na imprensa. Amigos, colegas e fãs se despediram publicamente, e a essência de suas homenagens revelou a multifacetada importância da artista. As mensagens não foram apenas lamentos, mas uma revalidação pública de seu lugar na cultura brasileira.
Maria Bethânia, por exemplo, fez um tributo em vida ao incluir canções de Angela em um show no Rio de Janeiro, demonstrando o profundo respeito de seus pares. A apresentadora Ana Maria Braga se emocionou com a notícia e destacou que a voz da cantora, “tão única,” não se calaria com o tempo, continuando a viver “em cada canção”. Outros, como Fafá de Belém e Zélia Duncan, se concentraram na coragem e na veia transgressora de Angela. Zélia relembrou que Angela Ro Ro era uma “moça sem recato” que “incomodou geral” e que suas canções sempre falariam de “mulheres que amam mulheres” e “de todos que quiserem falar de amor”. Fafá, por sua vez, a descreveu como “Louca, genial e abusada, como uma artista deve ser”.
A coletânea de homenagens funcionou como uma oração coletiva, um consenso sobre a importância de sua obra. O adeus virtual, sem uma cerimônia física, serviu para cimentar a imagem de Angela Ro Ro como uma artista inseparável de sua verdade, que pagou um preço por sua autenticidade, mas deixou uma marca indelével na música e na luta por direitos e visibilidade. A despedida foi menos sobre a morte e mais sobre a celebração da vida e da franqueza, uma revalidação pública de um legado que se tornou atemporal.
Artista | Trecho da Homenagem | Análise/Essência da Homenagem |
Zélia Duncan | “Uma moça sem recato, ou seja, incomodou geral… Suas lindíssimas e intensas canções, sempre vão falar de nós, mulheres que amam mulheres.” | Foco na coragem, na irreverência e no ativismo lésbico da artista, reforçando a conexão entre sua arte e sua identidade. |
Fafá de Belém | “Louca, genial e abusada, como uma artista deve ser… Ro Ro foi exatamente como suas canções, como levou sua vida.” | Celebra a genialidade e a autenticidade de Angela, destacando que sua vida e sua arte eram uma só. |
Ana Maria Braga | “Sua voz, tão única, não se calará com o tempo… seguirá viva em cada canção.” | Foca na imortalidade da obra musical de Angela Ro Ro e no legado que ela deixou para o público. |
Léo Jaime | “Tão importante na minha vida! Amiga querida. Descanse em paz!” | Ressalta a importância de Angela como amiga e figura pessoal, além de sua importância artística. |
Zezé Motta | “Amiga de mais de meio século, companheira de vida e de arte.” | Enfatiza a longa e profunda amizade e a parceria de vida e de arte que as uniu. |
Nanda Costa | “Perdemos Angela Ro Ro, uma das minhas compositoras preferidas. Sua voz, seu jeito irreverente, sua força no piano – tudo nela era único.” | Destaca a admiração da atriz pela cantora, ressaltando a unicidade de seu talento em diversas facetas. |
O Eco de Uma Voz que se Calou, mas Não se Apaga
A análise da vida e da partida de Angela Ro Ro revela a figura de uma artista que, mais do que cantar, viveu sua arte. Sua biografia, marcada por lutas pessoais e profissionais, controvérsias e um ativismo não rotulado, foi o caldeirão de onde emergiu sua poesia musical. O adeus, sem um velório público, reflete a discrição de sua partida, mas as homenagens generalizadas nas redes sociais garantem que sua voz rouca, autêntica e desafiadora continue a ecoar na cultura brasileira. O silêncio da sua morte é paradoxalmente preenchido pelo eco de sua poesia e sua rebeldia, que continuam a inspirar e a desafiar aqueles que buscam a verdade em sua forma mais pura. Angela Ro Ro não se calou; ela se eternizou.